Mulheres na Educação: no topo das Universidades

Mulheres na Educação: no topo das Universidades

O segundo artigo da série Mulheres na Educação traz a trajetória de duas educadoras que chegaram ao topo de suas carreiras dentro de uma Universidade: a Reitoria. Sandra Regina Goulart Almeida – Professora de Estudos Literários da Faculdade de Letras, com Pós-doutorado na Universidade Columbia (Nova York) e Pesquisadora do CNPq, acaba de ser reconduzida ao cargo na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e cumprirá um novo mandato de quatro anos. Lucia Campos Pellanda – Médica, Doutora em Cardiologia, Professora de Epidemiologia e Pesquisadora do CNPq, com MBA em Gestão em Atenção Primária em Saúde, também está no seu segundo mandato na UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre), desde o ano passado.

Com trajetórias diferentes, estas mulheres têm em comum a força, dedicação e a crença de que é possível chegar em todo lugar e ocupar seu espaço com ética e profissionalismo, sem esquecer de ter um ‘olhar feminino’ dentro do campus e, do lado de fora dele, na construção de uma sociedade mais equânime e justa.

Mulheres na Educação: no topo das Universidades

Para Sandra Regina Goulart Almeida, não há como dissociar a acadêmica da gestora, da mulher em um cargo de liderança. “A UFMG completa 93 anos em 2022. Dentre todas as gestões da Universidade, nesse longo período, sou apenas a 3ª mulher a ocupar o posto de Reitora. Isso diz muito sobre a dinâmica das relações de gênero nas instituições e na sociedade – e não é diferente do que acontece em outras, no Brasil e no exterior. Também sou a primeira mulher a chegar à Presidência da Associação de Universidades Grupo Montevideo – AUGM, importante grupo de Universidades Públicas de países da América do Sul”.

E ressalta: “se hoje mais de 50% das estudantes que ingressam na Universidade são mulheres, elas não estão igualmente distribuídas pelas áreas de conhecimento. É notória a ausência delas nas áreas de Ciências Exatas, muito em função do discurso da “aptidão das áreas” – quando se considera algumas mais femininas do que outras – e a segregação ocupacional – na qual carreiras majoritariamente femininas são mais desvalorizadas. É claro que, à medida que alçamos a pirâmide acadêmica em cargos de destaque, o número de mulheres diminui consideravelmente. É o conhecido ‘efeito tesoura’, como nos lembra a Professora Márcia Barbosa, estudiosa da situação das mulheres na ciência no Brasil”. 

Mulheres na Educação: no topo das Universidades

A percepção de Lucia Campos Pellanda segue na mesma direção de que as lideranças femininas vêm ganhando espaço, mas ainda há um longo caminho a conquistar. “Em relação ao número de reitoras das Universidades Federais, por exemplo, tem sido tempos muito difíceis. Houve uma redução na ocupação de cargos de lideranças nos últimos 3 ou 4 anos. Porém, as mulheres já são a maioria das docentes no nível superior e, pelo menos, metade das pesquisadoras no Brasil. O olhar das mulheres só pode beneficiar a Ciência. Muitos estudos mostram que quanto mais diversificado é um grupo de pesquisa, mais Ciência de qualidade ele produz. Mesmo assim, elas ainda são minoria nos cargos de liderança”.

A reitora da UFCSPA acredita que novas frentes estão se abrindo e mostra os dados de um levantamento, dentro da Universidade, durante a Semana da Mulher, que aponta que há 1252 alunas de pós-graduação, equivalente a 75% do total. São 250 docentes (65%), 127 técnico-administrativas (57%) e 2023 alunas de graduação (68%). Na gestão há reitora e vice-reitora e, das 6 pró-reitorias, 5 são exercidas por mulheres. 

Quebra de paradigmas

Mesmo que os números apontem para novas conquistas das mulheres, dentro das Universidades, ainda existem ressalvas. “Não há dúvida de que os cargos de liderança na Educação Superior têm crescido nos últimos anos, ainda que de forma tímida. De um modo, as mulheres têm sido capazes de quebrar o chamado ‘teto de cristal’ que impede, por preconceito ou pela divisão social do trabalho, que elas tenham as mesmas oportunidades que os homens”, faz uma analogia a reitora da UFMG.

Sandra Almeida se vale de uma menção recente da Ministra Carmen Lúcia, referindo-se que a nossa sociedade é ‘machista, racista e preconceituosa’. “Precisamos atuar no sentido de garantir cada vez mais a presença e a representatividade das mulheres nos espaços públicos e de poder. Repito o que disse em meu discurso de posse, como Reitora, em 2018: que este espaço que hoje ocupamos, que a visibilidade que algumas de nós temos sirva de modelo e exemplo a tantas jovens e mulheres na necessária luta por emancipação, liberdade e igualdade de condições e contra o preconceito e a violência que ainda vitimam tantas de nós”. 

Parece que este contexto é mais comum do que se imagina. Lucia Pellanda conta que um professor fez aquela tradicional brincadeira de que devíamos ter cotas para homens. Afinal, eles são pelo menos metade da população. “Nunca, na história da universidade, quando ela era tradicionalmente masculina – em proporções bem acima do que as de hoje, mas de forma inversa – foi cogitada a hipótese de cotas para mulheres ou de que havia homens demais. Acredito que vale aqui uma reflexão. É um pouco do que a juíza Ruth Bader Ginsburg falou quando perguntaram quantas mulheres seria justo ter na suprema corte americana: “Quando às vezes me perguntam quando haverá o suficiente (juízas na Suprema Corte dos Estados Unidos) e eu digo: ‘Quando houver nove’, e as pessoas ficam chocadas. Mas houve nove homens e ninguém nunca levantou uma questão sobre isso.” (A Suprema Corte americana tem um total de 9 juízes).

Os números continuam a delinear este cenário. O Índice de Desigualdade de Gênero no Brasil é um dos mais altos do mundo – 92ª posição no ranking, em 2019, destaca a reitora da UFMG. “O IDG é gerado a partir de dimensões: saúde reprodutiva, autonomia (empoderamento) e atividade econômica. O relatório do Fórum Mundial Econômico, publicado em dezembro do mesmo ano, ao analisar 153 países, aponta que o Brasil ocupa 130º lugar, quando o assunto é igualdade salarial entre homens e mulheres. A participação feminina em cargos de chefia é a metade da masculina. Globalmente, temos uma das piores representações de gênero feminino no Congresso Nacional. É uma situação preocupante, se pensarmos que hoje se sabe que o bem-estar de uma nação está diretamente relacionado à inserção das mulheres no trabalho e à erradicação da feminização da pobreza”, destaca Sandra.

Inspiração e conquistas 

Ao conversar com estas duas profissionais, fica claro que é preciso não apenas ocupar cargos, mas se valer deles na tentativa de despertar outras mulheres, para que possam também abraçar o papel de transformadoras, numa sociedade com muitas limitações, ainda.

“Sou, primeiramente, professora da UFMG e estou Reitora. Como professora sempre tive uma experiência positiva, em um espaço e uma área do conhecimento majoritariamente femininos. No entanto, à medida que fui assumindo cargos administrativos na instituição, pude observar como diminuía o número de mulheres. Sou a terceira a chegar a este posto, mas em outras universidades no país, e mesmo no exterior, as mulheres somente agora estão ocupando esta posição, como na UFRJ, que completou 100 anos e apenas atualmente tem sua primeira reitora. Foram, sem dúvida, muitos os desafios. As mulheres estão em uma posição de sempre terem que provar que são boas gestoras e que têm competência para os altos cargos de gestão universitária. Não é um dado natural, como no caso dos homens. A batalha para chegar nesses postos é árdua e requer muito trabalho, resiliência e obstinação”, ressalta Sandra. 

Ela reconhece que acaba de vencer um grande desafio. “Sou a primeira reitora a ser reeleita e nomeada, com aprovação e reconhecimento da comunidade universitária. Isso me enche de orgulho e esperança. Desejo que minha atuação sirva de inspiração para muitas meninas e mulheres que lutam por um espaço, em posições tradicionalmente relegadas a homens. E, com muitas mulheres de fibra, compartilho da satisfação de ‘cumprir a sina, inaugurar linhagens, fundar reinos. Mulher é desdobrável’, como diria a poeta Adélia Prado”.

Para Lucia, sua motivação vem de muitas gerações. “Tenho o privilégio de pertencer a uma longa linhagem de mulheres batalhadoras e fortes. Há bem pouco tempo, descobri em uns escritos guardados de um tio avô, que minha tataravó fez uma cirurgia em uma menina, atacada por um porco selvagem, ali mesmo na mesa da cozinha, pois o único médico estava a quilômetros de distância a cavalo. Ela tinha aprendido a suturar com seu pai, que andou pela guerra do Paraguai. E eu não tinha nem ideia sobre uma coisa incrível assim na minha própria família. Imagino que os grandes feitos das mulheres, inclusive o de salvar vidas, nunca eram registrados, até porque jamais elas poderiam estudar Medicina”, questiona.

Há, ainda, muitas histórias que a reitora da UFCSPA diz que lhe deixaram heranças positivas. Uma de suas bisavós largou tudo e mudou de cidade com 11 filhos, muita coragem e uma máquina de costura. Outra fugiu da família, porque estava sendo obrigada a casar com um homem que não queria.  “Mais uma coisa muito rara, para as mulheres da minha geração, é que tive avós que se formaram e trabalharam fora de casa. Uma como enfermeira obstetriz, formada pela primeira turma da Santa Casa, que me ensinou a lutar contra micróbios e injustiças. Outra, psicóloga e bacharel em Direito, que ficou viúva cedo e foi sozinha para Brasília, ser professora na recém-inaugurada UnB (Universidade de Brasília). Adolescente, na década de 1920, disse que não mudaria de nome quando se casasse e cumpriu a promessa, impensável para a época. Minha mãe, que foi minha professora de História no Ensino Fundamental, depois que os filhos estavam na faculdade, resolveu fazer mestrado, doutorado e pós-doutorados e hoje é bolsista de produtividade CNPq na modalidade Inovação tecnológica”, comemora Lucia.

E ensina: “aprendi com a filha, alunas, irmãs e amigas que, muitas vezes, o que eu achava natural, na verdade, era aprendido. E que se nunca me senti limitada em nada por causa das mulheres fortes que vieram antes de mim, preciso tentar ser para outras o que essas mulheres foram para mim.  Ouvir de alunas que elas pensam em ser reitoras um dia é uma prova disso e sempre aquece meu coração”.

Compromisso e responsabilidade

O papel que estas mulheres desempenham hoje vai além da gestão administrativa de duas importantes universidades do país. E elas estão cientes desta responsabilidade. 

“À frente de uma das melhores Universidades do Brasil, penso que tenho contribuído no sentido de ajudar a tornar a UFMG uma instituição cada vez mais de excelência e de referência, inclusiva e democrática. Focada não apenas na formação de recursos humanos para o mercado de trabalho, mas também na formação de cidadãs e cidadãos mais comprometidos com a nossa sociedade e com um país mais justo e equânime. Isso somente pode ser conseguido com investimento em Educação de qualidade. Temos um compromisso com a geração vindoura de construir uma sociedade mais respeitosa, diversa e tolerante. E esse caminho passa pela necessária igualdade de gênero, em todos os setores da sociedade. Estar neste lugar não apenas serve de inspiração para outras mulheres, como também me permite contribuir para a construção de políticas acadêmicas e políticas públicas, voltadas para uma maior inclusão das mulheres na Universidade e na sociedade”, projeta Sandra Almeida.

Lucia Pellanda confessa que jamais pensou em ser reitora, enquanto estava na universidade. “Era um mundo essencialmente masculino. Mesmo que na minha turma de faculdade tivesse cerca de um terço de mulheres, muitas vezes, nos espaços de representação, como a Congregação da faculdade, onde eu era representante discente, fui a única mulher na sala. Mesmo em lugares com predominância feminina, a chefia geralmente era exercida por um homem. Mas não me faltaram exemplos de mulheres fortes e generosas, cada uma a seu jeito, para iluminar o caminho. Também sou motivada pela ideia de que posso fazer o mesmo por outras que desejam seguir carreiras na Ciência, Saúde, gestão ou onde elas quiserem”.

O futuro da Educação, sob a ótica feminina

“Só consigo vislumbrar o futuro do nosso país por meio da ênfase e do investimento na Educação e na Ciência, como um todo. E, claro, pela ótica da igualdade e do respeito ao outro, por meio de uma sociedade mais igualitária e respeitosa da diferença. Há toda uma dinâmica relacional de poder que exclui certas pessoas do acesso à Educação que precisamos abordar. Temos uma responsabilidade ética na construção do Brasil que queremos para o futuro. Não pode ser uma nação que exclui uma parcela considerável de sua população a uma vida melhor, de acesso a direitos fundamentais como Educação, Saúde e Cultura. Não pode ser um país no qual tão poucas mulheres chegam a espaços de poder e representatividade. Lutar pela igualdade de gênero é um dever de todos nós – homens e mulheres – que queremos uma sociedade mais desenvolvida, com mais oportunidades para seu povo e um país melhor para se viver”, defende Sandra.

Mesmo lembrando que não é uma ideia nada nova, Lucia reforça o propósito de que a Educação precisa fazer pensar, ser uma construção conjunta de conhecimento, entre quem representa o papel de docente e quem está estudando. “Na verdade, o aprendizado se dá na interação, no afeto e até no desconforto de se lançar ao que é desconhecido. É uma oportunidade de crescer como ser humano. Sinto um privilégio enorme por ter a oportunidade de aprender todos os dias. Na Educação Superior, ao mesmo tempo em que há iniciativas muito inovadoras de ensino, ainda há muita resistência à mudança também. A pesquisa em Educação é pouco valorizada, mas traz elementos importantíssimos para o debate”, argumenta.

A reitora conclui que “talvez, o que convencionamos chamar como ‘feminino’, por causa da nossa socialização, seja justamente o conjunto de elementos que estão ausentes ou diminuídos na esfera pública, e é necessária uma integração entre todos os aspectos que convivem dentro de nós. Vejo a Educação cada vez mais inclusiva, verdadeiramente libertadora, formando seres humanos éticos, compassivos, críticos em relação ao mundo que os cerca e capazes de agir para transformá-lo”. 

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