‘Há uma questão cultural de investimento e valorização da profissão de docente no país’

O segundo artigo do Especial Mês do Professor traz uma conversa com três especialistas que reuniram suas experiências profissionais na obra Aprendizagem digital: curadoria, metodologias e ferramentas para o novo contexto educacional (Desafios da educação)Grupo A | Pensodisponível na Minha Biblioteca

Nesta entrevista exclusiva para o Blog da Minha Biblioteca, os autores  Daiana Rocha – Pedagoga, Mestre e Doutora, Gerente Acadêmica e de Conteúdo EAD da +A Educação,  Marcos OtaDoutor em Educação, Professor Pesquisador e Gerente de Design e Tecnologia Educacional na Cruzeiro do Sul Educacional e Gustavo Hoffmann – Fellow – Harvard University/ Laspau, Sócio e Consultor da vertical de consultorias da Plataforma A – destacam a necessidade do professor ter um olhar atento para este novo cenário, no qual se busca um modelo de ensino cada vez mais personalizado, em que metodologias de aprendizagem precisam cumprir a função de dialogar com as competências profissionais que são exigidas hoje. 

MB – Inovar na Educação tem sido um desafio no ensino-aprendizagem. Como as IES podem se estruturar e orientar seus docentes? 

Daiana Rocha – As IES devem investir em formação docente continuada, pesada e estruturada. Precisam organizar programas que trabalhem, de maneira híbrida, assuntos que envolvam a integração de metodologias, tecnologia e curadoria, para que os docentes compreendam os impactos dos resultados da união dessa integração para a entrega significativa da experiência de aprendizagem aos estudantes.

MB – Quais as ferramentas prioritárias para o novo contexto educacional? Elas mudam de acordo com as características de cada curso? 

Marcos Ota – A resposta é simples: depende! Os investimentos com as tecnologias digitais estão muito atrelados às metodologias e modalidades desenhadas por cada instituição. A Educação mudou porque o nosso aluno também mudou. As experiências de aprendizagem, suportadas por tecnologias durante a pandemia, criaram inúmeras possibilidades pedagógicas, mérito dos docentes que aceleraram suas competências digitais ao repensar suas aulas, dando origem a este novo contexto educacional, que tem buscado se aproximar de um modelo de ensino cada vez mais personalizado. 

Os recursos, dos ambientes virtuais e das plataformas de comunicação, não são mais exclusividade da educação a distância, passaram a compor as estratégias institucionais para viabilizar diferentes espaços de aprendizagem em atendimento aos modelos adotados. 

Esta dinâmica trouxe um maior acesso às bibliotecas e aos laboratórios virtuais para atender áreas do conhecimento como Engenharia e Saúde, pelo viés das práticas e de oportunizar experiências de aprendizagem imersivas, ao combinar roteiros de estudos que convidam os estudantes a solucionar problemas, simular processos, aplicar o que fora aprendido nas leituras e discussões em grupo/sala de aula.

MB – Como avaliar estas metodologias versus as exigências no perfil de profissional de hoje? 

Marcos Ota – É um caminho sem volta, justamente pela questão dessas metodologias cumprirem a função de dialogar com as competências profissionais que são exigidas hoje. O protagonismo do estudante ocorre essencialmente pelos aspectos da colaboração e da cocriação. Há um movimento grande de instituições repensando suas matrizes curriculares, com o objetivo de identificar estratégias didático-pedagógicas que possibilitem uma melhor experiência aos estudantes, em toda jornada de aprendizagem, incluindo as competências essenciais para atender as expectativas do mercado de trabalho. 

A curricularização da extensão, por exemplo, reúne ações para o trabalho social e exige do discente a aplicação do conhecimento para resolver problemas reais da sociedade. Outro ponto relevante está no desenho de modelos de avaliação por competências, tendo como suporte uma nova geração de ambientes virtuais que permite personalizar os caminhos de aprendizagem, a partir das competências adquiridas, que devem dialogar com o mercado de trabalho.

MB – Quais os estímulos ideais das  IES, pensando no professor, na curadoria de conteúdo e trilhas de aprendizagem? E os propósitos dos educadores? 

Daiana Rocha – A gestão educacional da IES precisa ter um método/processo claro de curadoria para que as trilhas de aprendizagem atendam às necessidades dos estudantes, desde a seleção do perfil dos docentes, com competências para tal atividade, compreensão da metodologia escolhida, até a formação técnica para uso dos portais de conteúdo. Este processo deve passar, minimamente, por quatro dimensões: curadoria, pedagógica, tecnológica e de qualidade. Estar aberto para aprender sobre elas e se desenvolver para atendê-las, na sua totalidade, é um dos principais propósitos que pode ampliar a atuação do docente para além da sala de aula.

MB – As transformações digitais impactam na transmissão do conhecimento? Há só ganhos ou é preciso cuidados também? 

Daiana Rocha  – Não falamos mais em transmissão do conhecimento. Essa forma de aprender está em extinção. Acreditamos na aprendizagem colaborativa e na inteligência coletiva. A transformação digital tem total conexão com essa evolução. Nossa sociedade exponencial conectada gera conhecimento o tempo todo em rede. Os cuidados que precisamos ter é com o excesso de informação ou as não fidedignas, o que ressalta o papel fundamental do professor curador de selecionar ou excluí-las – as equivocadas ou em excesso – direcionando a aprendizagem para um aproveitamento efetivo e significativo. Bons exemplos que geram engajamento é quando os estudantes percebem que suas trilhas de aprendizagem foram cuidadosamente pensadas para suas realidades de vida; que apresentam, não somente uma camada técnica de conteúdo conceitual, mas que também são compostas por acolhimento e representatividade prática, social e profissional.

MB – Como as discussões e em quais cenários de exemplos reais, mencionados na obra que escreveram, podem auxiliar as IES?

Gustavo Hoffmann – No modelo expositivo, que hoje prevalece, estudante e professor estão juntos, em um mesmo ambiente de aprendizagem – normalmente uma sala de aula – durante a fase instrucional, que exige uma capacidade cognitiva relativamente baixa. É quando participam passivamente ouvindo, tomando notas e, eventualmente, fazendo perguntas. Durante a lição de casa ou trabalhos e projetos extraclasse, que têm um grau de complexidade maior, o professor não está presente para apoiar. O modelo tradicional estabelece uma relação inversa entre o grau de dificuldade cognitiva do trabalho do aluno e seu acesso ao suporte do professor. Eles realizam o trabalho mais simples quando têm um apoio direto e o mais difícil sem esse apoio.

Um modelo just in time parece fazer mais sentido, partindo não da oferta de conteúdo, mas de situações-problema, nas quais o conteúdo é utilizado como ferramenta para a solução. Nesse ponto entram as metodologias ativas de aprendizagem, que propõem que o próprio aluno seja responsável pela busca e construção do conhecimento, com atividades que o colocam como centro desse processo, garantindo maior envolvimento e aprendizagem mais profunda e significativa. 

Assim, parte da aula expositiva (ou toda ela, dependendo do modelo) poderia ser substituída por conteúdo digital, em trilhas de aprendizagem ou plataformas adaptativas que permitissem o acesso do estudante ao conteúdo, quando quiser, onde estiver, quantas vezes quiser ou precisar, em seu próprio ritmo. Isso permitiria que, nos momentos presenciais (ou síncronos, em um modelo 100% on-line), o tempo da aula e a oportunidade de interação entre os colegas e entre professor-aluno fossem aproveitados para a realização de metodologias mais construcionistas, centradas no discente. Nunca houve um cenário tão favorável para as IES reinventarem seus processos de ensino, trazendo mais tecnologia digital, “hibridizando” seu modelo educacional.

MB – Qual o perfil do estudante atual que pensa ser um pedagogo? O avanço dos cursos EaD traz mudanças na formação deste profissional? 

Marcos Ota – O curso de Pedagogia, um dos mais expressivos das licenciaturas, enquanto número de alunos ofertados na modalidade a distância, tem a missão de preparar este novo profissional da Educação para os desafios de ensinar em diferentes espaços de aprendizagem, que incluem uma série de habilidades essenciais para que o futuro educador esteja apto para docência. Em especial, a proficiência digital (com intencionalidade pedagógica), o uso de metodologias ativas e as habilidades socioemocionais tornam-se primordiais para assegurar o processo de formação integral dos estudantes em todos os níveis educacionais, iniciando pela educação básica. 

As competências gerais, contidas na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para formação docente da educação básica, já apresentam bons insights de como as IES podem repensar suas práticas, para oportunizar uma matriz curricular mais aderente ao mercado de trabalho na Educação. Além disso, os cursos de licenciatura a distância precisam proporcionar uma experiência de aprendizagem rica, uma referência de boas práticas, que permitam os estudantes aplicá-las, além do aprendido, nos momentos síncronos e assíncronos.

MB – O Relatório do Instituto SEMESP aponta uma queda de  matriculados em cursos de licenciatura. E que os matriculados, em sua maioria, são de profissionais que já trabalham na área. Há o risco de um “apagão” de professores para o Ensino Superior?

Daiana Rocha – Esse cenário demonstra que há uma questão cultural de investimento e valorização da profissão docente no país. Se isso não ocorrer é provável que o apagão aconteça antes mesmo do previsto. Um caminho de incentivo, para que a escolha de profissões que envolvam a docência volte a se tornar prioridade, é ampliar a visão dos candidatos quanto à sua atuação, possibilidades além da sala de aula, como o importante papel de pedagogos nas organizações empresariais de saúde, por exemplo.

MB – A aprendizagem digital precisa ter quais características para ser atraente para o estudante, eficaz para o professor e trazer resultados para as IES? 

Gustavo Hoffmann – Para o estudante, deve-se respeitar o ritmo de aprendizagem de cada um. Conter trilhas flexíveis e, sobretudo, prever interação, tanto com o professor quanto entre os próprios alunos. Modelos muito autoinstrucionais, por mais interessantes que sejam, não trazem engajamento e aprendizagem, se não houver uma interação que tenha como principal característica a aplicação dos conceitos estudados. 

Para o docente, a aprendizagem digital precisa permitir a moderação do processo em atividades de maior nível de complexidade. Utilizar momentos síncronos para uma mera exposição de conteúdo acaba replicando um modelo tradicional de sala de aula que não desafia e não engaja tanto os estudantes. Se esse período fosse utilizado para menos exposição e mais aplicação do conteúdo, a aprendizagem se daria de uma forma mais efetiva, em menos tempo. Além disso, boa parte do conteúdo (em alguns casos, todo ele) pode ser apresentado de forma assíncrona, respeitando o ritmo de cada estudante.

Para as instituições, é muito importante que sejam considerados a qualidade do processo e o seu custo operacional, que se torna mais relevante em um cenário de crise econômica, agravada pela pandemia, e crise do FIES, que provocou uma necessidade de as IES revisitarem sua estrutura de custos. Pensar em um modelo educacional que traga mais aprendizagem a um custo que garanta a sustentabilidade financeira é um dos principais desafios do ensino superior brasileiro. 

Um bom caminho para o equilíbrio dessa equação é permitir que o professor interaja com os estudantes em atividades de maior nível de complexidade, onde seu apoio é fundamental. Quando houver menor complexidade, como o acesso ao conteúdo, boa parte do processo poderia ser autoinstrucional, sem o docente todo o tempo e com o uso de tecnologia digital. A eficiência desse modelo já está comprovada na sala de aula invertida. O aluno aprende mais, se engaja mais e pode custar menos, se tudo for bem planejado e executado.

MB – Como as plataformas digitais têm sido um pilar no aprendizado? 

Marcos Ota – A nova geração de plataformas digitais reúne uma série de funcionalidades e soluções integradas que direcionam e otimizam os processos educacionais. A curadoria de conteúdos, a partir da integração de bibliotecas e laboratórios digitais e simuladores, garantem o aprofundamento do conteúdo numa experiência unificada aos demais objetos de aprendizagem. Este ambiente torna-se favorável pela máxima da “aprendizagem sem desculpa”. 

Seja pela possibilidade de inversão da sala de aula e combinação de metodologias que estimulam o protagonismo dos estudantes, pela criação de trilhas de aprendizagem adaptativas e por gerar o engajamento entre alunos nos espaços de colaboração e co-criação. Para as licenciaturas, no caso da Pedagogia, a principal motivação dos estudantes está na autonomia para personalizar o estudo, acompanhar o progresso, visualizar os pré-requisitos e as competências a serem desenvolvidas em cada jornada do conhecimento. 

MB – De que forma as bibliotecas digitais podem compor uma infraestrutura/ecossistema educacional para apoiar na construção do conhecimento? 

Gustavo Hoffmann – Uma das premissas para o êxito de qualquer metodologia ativa de aprendizagem é que o estudante acesse o conteúdo previamente. Não há como resolver um problema, discutir um conceito, elaborar um projeto ou solucionar um caso se não houver um bom embasamento teórico. Isso pode ocorrer em aulas expositivas tradicionais, culturalmente muito bem aceitas, ou pelos conteúdos disponibilizados em um ambiente virtual de aprendizagem ou nas bibliotecas digitais. 

As aulas expositivas poderiam ser facilmente substituídas por elementos menos presenciais, como conteúdo digital, trilhas de aprendizagem on-line ou plataformas adaptativas, onde se incluem as bibliotecas digitais, composto por textos selecionados pelo docente, integrando outros objetos de aprendizagem, momentos síncronos e assíncronos, dentro ou fora do AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem), a fim de oferecer uma experiência híbrida e significativa.

MB – Hoje se ressalta a importância da formação de um profissional que conheça e saiba utilizar suas habilidades técnicas e competências socioemocionais. Como o docente pode contribuir nesta jornada?

Gustavo Hoffmann – Estima-se que mais de 80% dos empregos, possíveis daqui a 10 anos, ainda não existem. A National University of Singapore (NUS) prevê que seus egressos terão, em média, 6 carreiras diferentes ao longo da vida – não são 6 empregos. Não é à toa que, praticamente 40% da receita da NUS virá da vertical de lifelong learning nos próximos anos.

O Laboratório de Aprendizado de Máquina em Finanças e Organizações da Universidade de Brasília (LAMFO-UnB) estima que, até 2026, boa parte das atuais atribuições dos profissionais de nível superior serão substituídas por Inteligência Artificial. É provável que 76% das funções de um advogado, 79% do que hoje faz um engenheiro civil ou 55% das atividades de um enfermeiro deixem de ser realizadas por estes profissionais.

O portal Inside Higher Ed e a Gallup realizaram uma pesquisa que revelou um enorme gap entre as competências demandadas pelo setor produtivo e as que são trabalhadas dentro das universidades. Enquanto 99% dos gestores acadêmicos acreditam que estão formando profissionais com competências adequadas ao mercado de trabalho, apenas 11% dos líderes empresariais têm a mesma percepção. No Brasil, a Educa Insights apontou que 69% dos gestores acadêmicos creem que o nível de qualidade da formação das IES é alto ou muito alto, enquanto apenas 39% dos gestores empresariais têm a mesma visão.

MB – Então há um desequilíbrio neste contexto?

Gustavo Hoffmann – Boa parte desse gap está relacionado a competências socioemocionais – ou soft skills. Há um superdimensionamento das competências técnicas – hard skills – nos nossos currículos, enquanto as socioemocionais, também chamadas de competências do século 21, são subdimensionadas.

Empatia, comunicação, capacidade de resolução de problemas, criatividade e liderança são apenas algumas, tão importantes e que dificilmente serão substituídas por Inteligência Artificial. É evidente a necessidade de mudança dos nossos currículos. Os baseados em competências e a inserção de projetos integradores são uma excelente forma de aproximar a academia do mundo real. 

Estudantes dos primeiros períodos de graduação já deveriam ser submetidos a projetos que visassem resolver um problema prático da sociedade. A curricularização da extensão, já definida como obrigatória pelo MEC até o final do ano, precisaria ser vista como um importante elemento.

As metodologias ativas possibilitam ao estudante aplicar os conceitos em problemas reais e desenvolver competências além das técnicas, relacionadas a um determinado conteúdo. Sem dúvida, o docente é o grande responsável pela implantação desses currículos e efetivação de metodologias inovadoras. A questão é que, com raras exceções, no Brasil os professores do Ensino Superior não foram formados nesta direção e nem para o uso de tecnologia digital. Temos que formar, dar suporte a eles e acompanhar de perto a execução, corrigindo com agilidade eventuais erros. 

MB – Qual seria a mensagem aos professores que têm o papel de preparar os estudantes como profissionais e para a vida, ao ultrapassarem os portões das universidades? 

Gustavo Hoffmann – Nós, professores, temos que estar atentos às novas tecnologias, novos currículos, novas metodologias e competências, que serão demandadas pelos estudantes. As que nos trouxeram até aqui não são as mesmas que nos levarão adiante.  

Alvin Toffler dizia que o analfabeto do século XXI não é aquele que não sabe ler e escrever, mas aquele que não é capaz de aprender, desaprender e reaprender. Temos que estar constantemente nos reinventando, preparados para um modelo educacional que ainda nem foi inventado. Professores dificilmente serão substituídos por tecnologia, mas provavelmente por docentes  que saibam utilizar bem as novas tecnologias, sobretudo para catalisar os efeitos da aplicação de boas metodologias de ensino, em currículos bem desenhados. Estejamos preparados para esse futuro, venha o que vier. 

* A opinião dos entrevistados não expressa, necessariamente, o posicionamento do Blog da Minha Biblioteca.

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