Quem é o universitário brasileiro atual?

Desde que foi instituído o Dia Nacional do Estudante, em 11 de agosto de 1927, muito se avançou na Educação e as mobilizações seguem na construção de relações de ensino-aprendizagem que buscam conhecer as necessidades dos discentes, que não almejam mais apenas somar conhecimentos científicos, mas saber como aplicá-los na carreira, vida pessoal e na melhoria da própria sociedade.

Para celebrar a data, o Blog da Minha Biblioteca convidou o Prof. Luciano Sathler PhD em Administração pela FEA/USP; Membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) e do Conselho Deliberativo do CNPq; Reitor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (MG) e do Centro Universitário Metodista IPA (RS) –  para traçar o perfil do estudante atual e contar o que as IES (Instituições de Educação Superior) têm feito para aprimorar sua formação, num universo acadêmico mais tecnológico e que, ao mesmo tempo, valoriza as competências socioemocionais. 

MB – Qual o perfil do estudante brasileiro hoje? 

Luciano SathlerNo Ensino Superior, estávamos com cerca de 8 milhões e 212 mil matrículas, em 2021, sendo 6 milhões e 246 mil nas Instituições de Ensino Superior privadas ou comunitárias. Em 2020, as matrículas em cursos de Graduação a distância (EAD) chegaram a 35,8% do total, na tendência de maior crescimento nessa modalidade, comparado ao ensino presencial. A ampla maioria dos discentes estuda em cursos noturnos, o que aponta para estudantes trabalhadores, muitas vezes os primeiros de suas famílias que conseguem se matricular em um curso superior. 

O ensino superior brasileiro se encontra diante de um grande desafio, ao receber muitos estudantes que sofreram com sérios déficits de aprendizagem ao longo da vida, especialmente por problemas variados que impactaram a qualidade da oferta na Educação Básica. São alunos e alunas que contam com essa oportunidade para mudarem a sua história de vida e de suas famílias.  

MB – Qual o maior desafio dos gestores e docentes, diante de vários recursos tecnológicos e, ao mesmo tempo, limitações de acesso por parte de grande número de estudantes? Como atender estes extremos?

Luciano Sathler – O uso da tecnologia, no campo educacional, se acentuou muito nos últimos anos, um movimento que foi acelerado pela pandemia. Isso inclui as atividades-meio, tais como ferramentas de captação, retenção, registros acadêmicos, bibliotecas virtuais. E as atividades-fim, no ensino, na pesquisa e na extensão.

Um docente que se interesse em utilizar a tecnologia para desenvolver relações de ensino-aprendizagem mais significativas, deve se importar na busca do diálogo, para entender como os estudantes aprendem, como o conhecimento se contextualiza, não só para a formação acadêmica do discente, mas para todos os âmbitos da vida. Cabe às instituições educacionais fornecerem a tecnologia possível em suas instalações, assim como criar políticas que promovam a democratização do acesso para os estudantes e suas famílias. 

À inclusão digital se soma a alfabetização digital, a leitura crítica da informação e o uso criativo dos recursos tecnológicos para que a aprendizagem seja alcançada a contento. O maior limite não é a tecnologia. O desafio mais difícil é a mudança de cultura e da mentalidade por parte de gestores e docentes, que, muitas vezes, correm o risco de adotar tecnologias avançadas ainda para praticar metodologias ultrapassadas de ensino, que não privilegiam o protagonismo dos estudantes.

MB – Alguns especialistas defendem que o mais importante não é apenas o ensinar, mas como os estudantes aprendem, absorvem estas informações e as transformam em conhecimento para sua formação acadêmica e para a vida. Estas colocações refletem a Educação atual? 

Luciano Sathler – A aceleração cultural trazida pela pandemia, em meio à tragédia humanitária que ainda estamos, empurra toda a sociedade em direção ao paradigma da Sociedade da Informação.  

Assim como a humanidade já vivenciou a Sociedade Agropastoril e a Sociedade Industrial, nós entramos na Sociedade da Informação com o advento da Internet e da onipresença das telas em nossas vidas, a chamada ubiquidade digital. 

Essa mudança de paradigma acontece em ritmos e intensidades diferentes, a depender do local que você vive, do trabalho que você exerce e, especialmente, da classe socioeconômica na qual sua família se encontra. Tem aumentado a exclusão da maioria e a concentração de oportunidades nas mãos de poucos.

Uma tarefa primordial da educação é colaborar para setores cada vez mais amplos da sociedade se apropriem da tecnologia, não apenas para o uso, mas também na capacidade de criar, modificar e utilizar os recursos para mudar positivamente a realidade na qual se encontram.

MB – As soft skills são essenciais no aprendizado atual? E as habilidades de dados – data skills – estão em segundo plano?

Luciano Sathler – Cada um deve se perguntar: o que eu faço melhor do que um robô possa jamais fazer? E todo professor precisa se questionar sobre: como ser melhor do que as duas primeiras páginas de respostas do Google para orientar um estudante

Há um ritmo crescente de automação dos trabalhos que exijam menor criatividade e que sejam mais rotineiros. O conhecimento hoje se dissociou definitivamente do ‘decoreba’, chegando a ser considerado ultrapassado quem ainda insiste em manter um saber enciclopédico memorizado sobre qualquer assunto. 

O mais importante é saber aprender sempre, para ser capaz de elaborar e contextualizar novos conhecimentos a partir das mudanças que a Sociedade da Informação traz. É inédita a quantidade de informação nova sobre qualquer assunto que é produzida hoje em dia, assim como a velocidade e o alcance de sua disseminação. 

Nesse sentido, não se concebe mais um conhecimento que não possa ser constantemente atualizado, sem perder seus fundamentos cientificamente válidos, e que essa atualização se dê em rede, por meio da capacidade de se relacionar com os outros. Daí a importância das competências socioemocionais (soft skills).

Nós temos hoje, nas classes com maior poder aquisitivo, uma geração de jovens que brincaram pouco na rua e que cresceram muito mais isolados do que seus antecessores, seja em lares com famílias menores ou mesmo em condomínios fechados, que replicam bolhas sociais. 

E, dentre as famílias mais desfavorecidas, o contexto de violência e desesperança, muitas vezes vivenciado, tende a impactar negativamente o engajamento e os resultados de aprendizagem. 

O resultado é cada vez mais gente com diplomas nas mãos, mesmo com déficits de aprendizagem, e pouca ou nenhuma capacidade para amar, ser amado ou mesmo sem ter condições para enfrentar as adversidades da vida sem surtar. Hoje em dia as pessoas são contratadas pelo que dizem saber e são demitidas pelo que são. 

MB – As IES estão capacitadas para a formação dos estudantes qualificando-os para a vida profissional?

Luciano Sathler – É preciso alinhar o currículo e as metodologias de ensino às demandas reais da sociedade e do mundo do trabalho. Hoje há um descompasso entre a maioria das IES e o restante do mundo. Conteúdos e práticas voltadas para o passado, ministrados por docentes que dialogam pouco com o setor produtivo e IES que geram diplomados que chegam muito despreparados nas organizações, onde gestores sentem a necessidade de ensinar tudo a quem pouco sabe, na prática.

Um desafio urgente é o da Microcertificação, inclusive de saberes desenvolvidos fora dos ambientes escolares, que evidencie competências e habilidades.

MB – Quando se propõe incorporar tecnologias da informação e comunicação na Educação, o principal objetivo é apoiar os processos de ensino e aprendizagem ou vai além? 

Luciano SathlerCada IES precisa ter seu plano digital, que ampare e evidencie um processo de transformação digital – vide figura 1.

O fundamento é a infraestrutura, o que inclui, por exemplo, espaços físicos híbridos – que permitam o desenvolvimento de atividades on-line -, a disponibilização de vídeos on demand, a utilização da computação em nuvem, o uso de laboratórios de informática, políticas que incentivem aos estudantes levarem seus próprios devices para a escola (bring your own device – BYOD), internet, wi-fi, bluetooth e acessibilidade. Os sistemas que permitam a realização dos registros acadêmicos com a segurança e a integridade adequadas. A captação e a retenção dos discentes com o apoio de sistemas de informações, inclusive de business intelligence (BI). 

A sala de aula virtual, que abrange um ambiente virtual de aprendizagem bem-organizado, acessível e que promova o diálogo entre todos seus usuários. Nesse espaço devem estar disponíveis materiais didáticos em formatos variados – vídeos, textos, imagens, podcasts etc. Além de fontes bibliográficas abundantes, inclusive recursos educacionais abertos. 

Por fim, mas não menos importante, a identidade institucional deve ser revelada na arquitetura curricular inovadora, fundamentada nos princípios da escola democrática, sistemas que apoiem o desenvolvimento da carreira profissional de estudantes e egressos, o suporte para a realização da extensão universitária que permita tornar mais porosos os limites da instituição e o diálogo com a sociedade. 

A Microcertificação é uma tendência e que necessita contar com plataformas capazes de organizar e visibilizar, com segurança e privacidade, as trilhas de aprendizagem seguidas por cada aluno.  

Mais importante do que contar com tecnologias muito sofisticadas e, às vezes, muito dispendiosas, é capacitar e motivar pessoas para liderarem o processo de transformação digital. 

É uma questão de mentalidade, para gerar inovação nas metodologias de ensino-aprendizagem, uma nova arquitetura curricular, mais aberta e flexível, e, especialmente, ser capaz de tornar mais porosos os muros da universidade por meio da extensão universitária e da interdisciplinaridade.

“Quem não for capaz de entender a mudança de paradigma e se adaptar aos ditames da Sociedade da Informação vai desaparecer ou cair num processo de irrelevância – um risco, inclusive, para universidades públicas”

MB – Como avalia as principais deficiências e avanços em relação às metodologias de ensino atuais? 

Luciano Sathler – ‘O futuro já chegou, só está mal distribuído’. Essa frase foi emitida pelo pai do movimento cyberpunk, em 1999, Willian Gibson. E retrata muito bem o momento em que nos encontramos. Há IES novas, que já nascem na busca da inovação como marca de seu DNA. Algumas com boas intenções, financiamento abundante, mas com poucos fundamentos educacionais de verdade.

Há IES que atuam há décadas e que estão num sério esforço de se adequarem aos novos tempos, sem renunciarem à sua sustentabilidade econômico-financeira. E há IES onde o corporativismo e a má gestão parecem empurrar para o abismo a possibilidade de perenidade. 

Sim, pois é disso que se trata: quem não for capaz de entender a mudança de paradigma e se adaptar aos ditames da Sociedade da Informação vai desaparecer ou cair num processo de irrelevância – um risco, inclusive, para universidades públicas.

MB – Quais os diferenciais e estratégias que as IES podem proporcionar aos estudantes – seja um grande grupo ou instituições de menor porte – no ensino presencial, híbrido ou EaD?  

Luciano Sathler – A pergunta-chave é o que diferencia uma instituição educacional de uma editora, de uma empresa jornalística, de um museu ou de uma biblioteca? E a resposta está no professor. 

Num tempo em que a informação se tornou abundante ao ponto de quase obsediar as pessoas, a docência é mais importante do que nunca. O diferencial, portanto, estará na mediação, a relação de ensino-aprendizagem marcada pelo humano, pela empatia e pela compaixão. 

Professores precisam entender seus alunos e alunas de forma individualizada, o contexto em que se inserem e de onde vêm, seus anseios, limitações e possibilidades. E os discentes precisam enxergar nos olhos dos docentes a confiança e o cuidado que os engajará na construção necessária do conhecimento.

“A tendência é que, em breve, não seja mais possível diferenciar a EaD como uma modalidade – será tudo educação, com maior ou menor carga de encontros presenciais

MB – O avanço nos cursos EaD reflete apenas uma solução prática surgida na pandemia ou é um caminho sem volta? Quais os pontos mais relevantes de se ampliar o acesso a distância de graduação e especialização?

Luciano SathlerA EaD é um movimento de democratização do acesso ao ensino superior e mais da metade da população universitária brasileira está em cursos à distância, no ano de 2022. 

Num país de profundas e persistentes desigualdades como é o Brasil, ter a possibilidade de estudar e conseguir um diploma de ensino superior pode fazer uma diferença positiva enorme na vida das pessoas. A tendência é que, em breve, não seja mais possível diferenciar a EaD como uma modalidade – será tudo educação, com maior ou menor carga de encontros presenciais.

A qualidade da formação não tem com a ver com o fato de um curso ser presencial ou a distância, mas sim com o compromisso de cada IES com seus discentes e com a transformação da sociedade. Sempre haverá instituições melhores ou piores do que as outras. 

Cabe aos governos, empresas, organizações sociais e cidadãos criarem meios de fiscalizar e corrigir práticas que terminam por gerar as chamadas fábricas de diplomas, onde as pessoas finalizam seus cursos sem aprenderem o que deveriam ter realmente aprendido. 

MB Agora como Reitor do IPA – Centro Universitário Metodista, cargo que assumiu recentemente, quais suas prioridades na nova gestão? 

Luciano Sathler – Atualmente, estou à frente da Reitoria do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, em Belo Horizonte (MG), e do Centro Universitário Metodista IPA, em Porto Alegre (RS). São duas instituições muito prestigiadas pela sociedade, centenárias, e estar nessa posição é algo muito honroso para mim. Além disso, estou Diretor de Educação a Distância da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo (SP).

É claro que essa multiplicidade de funções só é possível por contar com ótimas equipes nesses locais e com os recursos de comunicação propiciados pela tecnologia. Nosso maior desafio hoje nas instituições educacionais metodistas é a integração e o reposicionamento estratégico, na busca de excelência e sustentabilidade. 

MB – Como membro do Conselho Deliberativo do CNPq, como vislumbra o futuro e como se pode repensar Ciência, Tecnologia e Educação?

Luciano Sathler – Os órgãos de fomento da pesquisa e da inovação no Brasil sofrem com a crise econômica nacional e mundial, agravadas pela pandemia e, mais recentemente, pelo conflito entre Rússia e Ucrânia, fatos que têm gerado inflação em nível global e restrições orçamentárias necessárias para estarem alinhados aos princípios da boa governabilidade.  

O CNPq tem prestado um importante serviço nesse contexto, dentro de suas possibilidades de orçamento, que são ditadas pelas limitações orçamentárias impostas por lei. 

Fica claro que o país vai precisar, cada vez mais, aprender a priorizar seus esforços de pesquisa para promover o desenvolvimento nacional. Isso significa também avaliar o impacto dos resultados de pesquisa de uma forma que não era comum no país, o que pede uma mudança na cultura científica brasileira – para seguir exemplos tais como Alemanha, China, Coréia, EUA e Japão. 

*A opinião dos entrevistados não expressa, necessariamente, o posicionamento do Blog da Minha Biblioteca.

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